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quinta-feira, 10 de maio de 2012

“O Direito e os Direitos Humanos”, de Michel Villey.

Antes de adentrar às minhas impressões desse livro polêmico – o que se vê já pelo título! – sinto-me na obrigação de falar sobre a pessoa de seu autor. Afinal, se seu conteúdo é incomum, mais certo ainda é que não surgiu do nada, mas sim de uma vida dedicada à Filosofia do Direito – e esse livro foi um dos últimos da vida do autor.




Michel Villey foi um jurista e filósofo francês, nascido em 1914 e falecido em 1988. Foi professor da Universidade de Strassburg e depois da Universidade de Paris, onde fundou um centro de estudos de filosofia do direito ao qual é creditado o retorno dos estudos da disciplina na França. Conhecido como romanista, excelente professor, bem-humorado e polêmico, adotou visões conservadoras, sempre fundado nas lições de seus dois principais mestres: Aristóteles e São Tomás de Aquino. Atualmente, seu trabalho continua através do Instituto Michel Villey, com sede na Universidade de Paris II.



A tônica de sua obra foi sempre a seguinte: vivemos hoje sob a égide aparentemente hegemônica do chamado direito subjetivo. No entanto, essa criação consagrada no século XIX pelo código civil de Napoleão e o trabalho dos pandectistas alemães nem sempre existiu e veio substituir uma outra noção do direito, com mais de 2.500 anos de Idade, que nada tem a ver com o “poder de agir garantido pelo Estado-Juiz” ou o “interesse juridicamente protegido”, para usar a definição de Jhering.



A causa deste livro foi pontual: a necessidade de resposta ao discurso do Papa João Paulo II enaltecendo os direitos humanos. O susto foi considerável: a declaração papal foi de encontro a dois séculos de condenação, por parte da Igreja, dos “direitos humanos” como invenção de um liberalismo sem peias, contrário à religião e à sociedade.



O livro começa com uma crítica geral dos direitos humanos, mas acaba resumindo toda a trajetória da “Formação do Pensamento Jurídico Moderno” (1): vai buscar em Aristóteles o significado original de direito, que foi aquele incorporado pelos romanos no Corpus Juris Civilis, Corpus esse que foi durante a Baixa Idade Média até a promulgação dos Códigos Civis nacionais a fonte comum do direito na Europa (2).



A principal crítica de Villey aos direitos humanos é a sua imprecisão: são direitos retóricos, que são bonitos de repetir, mas impossíveis de praticar. Isso não é cinismo, trata-se de uma questão de lógica. É que direito é sempre uma relação entre homens, expressa no binômio direito-dever, ao passo que os direitos humanos são uma dedução cartesiana das qualidades intrínsecas do Homem, com “H” maiúsculo, um ser abstrato com liberdade aparentemente ilimitada, e que na realidade não existe.



São criticadas as expressões “Direito à Saúde” (então se eu ficar doente posso processar o Estado?), “Direito à Vida” (se alguém morrer, vamos processar) “Liberdade de Expressão” (só quem pode se expressar com algum alcance, de fato, é quem tem acesso aos meios de publicação, isto é os ricos), dentre outras. São direitos absolutos, subjetivos, divididos de forma supostamente igualitária, sem que, contudo, a contrapartida – o dever correspondente – fique bem definida.



Na concepção aristotélico-tomista, que é fundamentalmente a do Corpus Juris Civilis (3), o direito é dar a cada um a parte que lhe cabe dos bens corpóreos e incorpóreos, seja para atingir a justiça sinalagmática, seja para atingir a justiça distributiva. Ninguém tem direito, ou nasce com um direito. Direito é uma coisa que se discute quando há conflito de pretensões: as partes vão ao juiz, que ouve um lado da história, depois ouve o outro, e, fazendo a dialética da opinião das partes, com respaldo nos auxiliares da justiça, encontra o direito (jus inventionis, de descoberta): a parte que cabe a cada um.



E como se faz isso? A princípio, observando as relações sociais, e verificando quais delas são espontaneamente mais justas e portanto mais modelares. Com o tempo, as sentenças dos magistrados vão se autorreferenciando, formando uma jurisprudência que abrange vários casos análogos. Nada que fosse radicalmente diverso do atual sistema anglo-saxônico, por exemplo (4).



Em todo esse longo período em que o Corpus Juris Civilis foi a principal fonte dos estudos jurídicos, não se confundiu lei e direito. Leis eram comandos que se referiam ora a questões procedimentais – como o próprio processo judicial – ora a preceitos morais. Sim, eu sei que é estranho para nós hoje em dia, mas antes de Kant promulgar essa moral descarnada do imperativo categórico, a moral era algo mais ou menos pública, cogente e dotada de um aparato coercitivo – muito coercitivo. Havia ainda um outro conjunto de regras: aquelas adotadas fora da vida na cidade, dentro das famílias, âmbito no qual, a princípio, nem as leis nem os juízes se metiam, salvo em caso de extrapolação (p. ex., homicídio).



E o direito, jus, tinha um significado bastante claro: era o resultado da repartição de bens e honrarias entre cidadãos. A repartição buscava, mas nem sempre atingia, o resultado justo. Era a maior justiça possível dentro do limite de tempo razoável para a duração de um processo. Um processo de tentativa e erro, indutivo, que visava à consecução da justiça.



Evidentemente, um tal método acabava por diferenciar o direito de cidade para cidade. “O fogo arde na Grécia como na Pérsia, mas o direito é diferente em cada lugar”, vai nos dizer Aristóteles em sua Política.



Mas num determinado momento da evolução do pensamento jurídico, começaram alguns filósofos e teólogos – não juristas! - a amalgamar os conceitos de lei e direito. Especialmente Guilherme de Ockham, que, no afã de resolver um pequeno problema jurídico da Ordem Franciscana com o Papa, depositava na vontade e no indivíduo uma ênfase absoluta. O monge espiritualista vai defender que o justo emana da lei, que por sua vez emana da vontade perfeita de Deus ou daqueles que Ele permite que governem: os reis. Chega a dizer que se Deus, ao invés de ter mandado “não matar”, tivesse ordenado a matança geral, isso ainda seria bom, pois é Deus quem determina o que é bom e o que é mau; no final das contas, a única coisa que nós temos que fazer é obedecer e, se der errado, “nós só estávamos cumprindo ordens”.



Deus então, por seus meios, conferiu a todos os indivíduos o jus poli, o direito emanado dos céus, e o jus fora, o direito de acionar terceiros na justiça. Este último jus, leciona o franciscano, pode ser renunciado livremente: vejam a que distâncias foi Ockham para criar o usufruto como direito separado da propriedade, a fim de manter íntegra a regra da ordem franciscana!



A partir de então, começam a correr paralelas duas concepções do direito: de um lado os juristas com o velho jus romano, fundado nas faculdades do intelecto e da contemplação do real (direito ontológico, ou jus in re). Doutro, os teólogos e filósofos que, sem formação jurídica séria, se meteram a falar de direito e, quanto mais falavam, mais se aproximavam da concepção moderna do direito subjetivo e dos direitos humanos, fundada na pura vontade e cada vez mais abstrato.



Pegando um atalho de alguns séculos – vejam no livro os detalhes – descobrimos em John Locke, mais um pensador sem formação jurídica decente, a criação dos direitos do “Homem”: aqueles direitos naturais e inalienáveis que, no fim das contas, nada têm de universais: somente a classe burguesa, que Locke defendia contra a dinastia Stuart, tinha meios de gozar daqueles direitos, que por sinal Locke fazia repousar sobre o mais importante e absoluto de todos: a propriedade. Se você é pobre, ferrou-se, contente-se com seu direito de papel.



O fundamento último desse raciocínio é uma mistura de duas poderosas influências: primeiramente, a redescoberta da geometria de Euclides e a obsessão desses pensadores em deduzir todo um sistema lógico de um princípio universal e centralizante, como se se tratasse de deduzir as leis geométricas dos cinco axiomas euclidianos, contrariando a instrução de Aristóteles – por sinal o pai da lógica – de que o direito e o justo particular deveriam ser investigados pelo método dialético, que o filósofo chamava de lógica inventionis, a lógica apropriada para descobrir algo; em segundo, a mistura entre teologia cristã e direito, contrariando a clara instrução de São Tomás de Aquino: segundo o doutor da Igreja, o direito deve continuar profano, as virtudes mesmas devem continuar profanas, teologia só tem que se meter com a fé, a esperança e a caridade.



De nada adiantou, e pessoas que tinham em péssima conta o direito resolveram criar os direitos subjetivos e depois os direitos humanos. O que poucos sabem é que essa criação visou a defender uma ideologia: primeiramente, a da concentração do poder e centralização da administração nas mãos do Estado; em segundo lugar, a ideologia burguesa, do “melhor direito que o dinheiro pode comprar”.



Sinal da precariedade destes, segundo o autor, é o fato de que os direitos humanos estão em todas as Constituições, inclusive a do período stalinista da União Soviética, a de Uganda e a da maior parte dos governos ditatoriais. Igualzinho às constituições democráticas. Os mesmos direitos humanos podem ser usados para defender a vítima do agressor e o agressor do juiz, a soberania de Israel e, na mesma medida, a soberania da Palestina; há o esquisito direito à felicidade, o inabarcável direito à saúde, dentre outros.



São promessas que soam muito bem, mas são tão indefinidas que se prestam a favorecer igualmente uma como a outra parte, esta como aquela causa. Servem para tudo e, arrisca o autor, seriam até mesmo uma espécie de auto-hipnose que usamos para nos assegurar de que estamos fazendo alguma coisa pelo mundo, algo como o que os murais de facebook são para os engajadinhos de hoje em dia. Os preceitos morais, quando antes de Kant ainda tinham cogência e eram heterônomos, faziam o serviço muito mais eficientemente. O direito sinalagmático e distributivo fundado na observação das relações humanas e na jurisprudência de casos análogos daria conta do resto.



Mas agora a moral é subjetiva, cada um tem a sua, e nenhuma é coercitiva com relação ao comportamento dos outros. Devemos obedecer à lei não porque ela seja razoavelmente moral, justa, leve à ordem harmônica, mas porque ela foi posta pelo Estado, que aliás agora é responsável por resolver todos os nossos problemas. No fim das contas, todas as nossas esperanças são colocadas no Estado, todas as relações vão parar no Judiciário – lembro-me de quando se davam exemplos de relações indiferentes ao direito, no início do curso na faculdade: será que hoje elas ainda existem? – alguém aqui conhece todos os funcionários públicos do Estado, sabem se eles são boas pessoas? Ainda que sejam, será que daqui a, digamos, 8 anos serão os mesmos? Por que o Estado tem que resolver tudo?



Bem se vê que ao autor não deixa de assistir pelo menos alguma razão. Não queremos admitir para nós mesmos que exista algo como a “reserva do possível”, não pega bem, mas a realidade é que os bens são escassos e o direito é uma relação: se uns têm direitos, o mesmo tanto terá deveres correlatos; portanto, aumentar o número de direitos é aumentar a carga dos deveres.


Rio de Janeiro, 14 de março de 2012, com finalização em 10 de maio de 2012.

Felipe Oquendo



Notas:



(1) Outro livro de Villey, consideravelmente mais longo, também publicado entre nós pela WMF Martins Fontes.



(2) Esquecido do mundo ocidental durante a Alta Idade Média, o Corpus Juris Civilis foi cultivado no Império Romano do Oriente. No Ocidente, vigorou uma mistura original de Direito Romano e Direito Germânico (Breviário de Alarico, Código Visigótico, etc.) até as Cruzadas, quando o Corpus é redescoberto pelos mercadores italianos.



(3) O Corpus Juris Civilis não é um Código: começa com as Institutas, que é como que um livro didático para aprendizes da arte jurídica, passa pelo Digesto, coletânea de jurisprudência e máximas, e termina com as Constituições Imperiais e as Novas Constituições Imperiais, estas últimas, e só estas, semelhantes a uma lei.



(4) Após a queda do Império Romano do Ocidente, a Inglaterra passou por séculos de isolamento da Europa continental. Nesse período, os normandos, oriundos do norte da França e Bélgica, dominaram os povos da Ilha (pictos, celtas irlandeses, bretões, romanos, etc.) e impuseram o Direito Romano, que cultivaram apesar das invasões bárbaras. Isto, em grande parte, explica a conservação do modo romano de administração da justiça no território britânico.



(5) O livro é tão polêmico que dentro dele há uma surreal discussão entre o autor e o editor, na página 104.

4 comentários:

  1. Não precisarei postar no face que agradeço muito pelo execelente texto quen nos dá uma idéia de Michel Villey. Lembrei-me das aulas do Bonaldo!!!

    Abs e parabéns.
    ALberto.

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  2. Muito bom texto, Oquendo... Essa riqueza de detalhes e precisão textual só tem a engrandecer o blog...
    Visando fomentar o debate que todo bom texto deve propiciar, não acho que a orientação e a conclusão estejam em consonância com nosso texto constitucional atual, bem como com o viés humanístico da CR88. Afinal, a dignidade da pessoa humana é o fundamento axiológico de todo o ordenamento jurídico de hoje, não se podendo invocar qualquer óbice como a reserva do possível (cuja origem nada tem a ver com sua aplicação brasileira)...

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  3. Mais um excelente texto, Oquendo.
    Semelhante problematização se pode enxergar nas discussões acerca do Neoconstitucionalismo, do modo de aplicação dos princípios e da suposta sobrevalorização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
    É fundamental partir de uma premissa metodológica para analisar os institutos jurídicos dos quais nos valemos (quase que de forma automática e acrítica). Caso contrário, seremos levados pela estética do discurso, e pouco se poderá extrair daquilo que for construído sobre a estrutura da moral subjetiva.
    Se não concordo com todas a críticas que são tecidas aos temas acima referidos, ao menos reforço o entendimento de que precisamos de parâmetros. Afinal, se tudo é "Dignidade da Pessoa Humana", em verdade, nada o é, e o princípio fica esvaziado.
    Parabéns pelo texto. Aliás, sugiro que vc disponibilize o link, ou mesmo o texto, do artigo que você nos enviou sobre P.I.

    Abraços

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  4. Um ótimo texto. Realente é difícil qualificar temas tão complexos e abstratos como os Direitos Humanos e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
    São institutos basilares em todos os ordenamentos jurídicos, no entanto, devemos traçar alguns parâmetros, já que "se tudo for trunfo, nada o será".
    Em tempos da reaproximação de justiça e direito com o neokantianismo, neoconstitucionalismo; a utilização do Princípio da Subsidiariedade, da proporcionalidade,ponderação, da implamentação de direitos ao maior número de indivíduos, da chamada reserva do possível(Corte Constitucional Federal da Alemanha - restrição do número de vagas nas universidades), do mínimo existencial. Todos estes são de alguma forma nortes para orientação do que realmente seja o mais próximo do núcleo do Principio da Reserva do Póssivel, além da qualificação dos Direitos Humanos.

    Abraços.

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