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domingo, 22 de abril de 2012

Sobre Ortega y Gasset 



 Fui incumbido pelos meus confrades da grata tarefa de falar um pouco sobre José Ortega y Gasset, cujo sobrenome tomamos emprestado, sem pedir licença, num misto de brincadeira e seriedade, para batizar nossa confraria. O primeiro artigo, portanto, dedicamos ao patrono da confraria, em indenização muito modesta pelo batizado putativo.

Nascido a 9 de maio de 1883 em família de jornalistas e donos de jornal, Ortega foi destinado desde cedo a uma educação superior em qualidade e abrangência. Estudou com jesuítas – o que então significava receber a melhor educação humanística disponível – e formou-se em filosofia pela Universidade Central de Madrid, com 21 anos. Logo vai para a Alemanha, onde toma contato não só com a filosofia ali desenvolvida, em especial o neokantismo e também a fenomenologia de Husserl, cuja árida técnica vai dominar com airosa bonomia, como também com a psicologia de Jung, voltando agnóstico para a Espanha.

Assume em 1910, com apenas 27 anos, a cátedra de metafísica na Universidade de Madrid. Em 1914, com 31 anos, estreia em grande estilo com a publicação de seu primeiro livro “Meditaciones del Quijote”, em que incrustou a famosa frase:

 "Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim."

 E não se pode dizer de Ortega que tenha criado um muro artificial entre produção acadêmica e vida prática, pois a partir de então passa a envidar todos os seus esforços para salvar a sua circunstância, no caso, sua pátria, o que fez primordialmente pelo verdadeiro projeto de salvação da intelectualidade espanhola, que estava, pela marcha da entropia, fadada à nulidade, e em segundo plano por sua participação direta – e todavia breve - na política.

Fez isto primeiramente fundando a “Revista de Occidente”, em 1923, onde não só escrevia com colegas de altíssimo calibre intelectual, como também traduzia para o espanhol artigos de importantes pensadores estrangeiros, dentre eles Johan Huizinga, Bertrand Russel e o já citado Edmund Husserl; paralelamente, a Revista funcionou como editora de livros importantes no solo de Quixote.

Em segundo lugar, pelos alunos e influenciados que deu à Espanha e ao mundo, dentre eles Julian Marias, Garcia Morente e Xavier Zubiri.

Em terceiro, pela publicação dos livros “Rebelion de las Massas” (1929) e “España Invertebrada” (1921), dentre outros, onde o apelo de retorno à verdadeira filosofia e ciência já se mesclava à admoestação eloquente para a ação política – a famosa luta contra os “señoritos satisfechos” que dominavam o poder, na Espanha e no resto da Europa (lembrem-se que o livro “Rebelion de las Massas” foi profético quanto à ascenção de Hitler – o máximo hombre mediocre - e o partido nacional socialista alemão). É dessa fase também a criação de geniais tropos políticos e filosóficos, como “estupidez homicida”, "ensimesmamento", "alteração", “fundo insubornável do ser”, e outros que tais.

Não é exagero dizer, junto com todos os seus comentadores, que Ortega y Gasset catalizou sozinho um movimento de renovação espiritual da Espanha, análogo ao que tinha começado fulgurante, mas logo tornando-se esmorecente, de 1898, representado em especial por Unamuno, Antonio Machado e Pio Baroja. Sem Ortega, a existência cultural e espiritual da Espanha estaria fadada à melancólica lembrança dos siglos de oro e plata, que por si só não impediria a ductilidade débil à influência externa massificante.

Mas não só na Espanha exerceu Ortega sua força. Após ter se envolvido com a República, degostoso dos rumos do conflito espanhol, auto-exilou-se na Argentina em 1936, às portas da Guerra Civil Espanhola, só retornando à pátria ibérica em 1942. É dessa época a amarga constatação que fez no prefácio à edição francesa de sua “Rebelión..”:

"Ser de esquerda é, como estar na direita, uma infinidade de maneiras que o homem pode escolher ser um imbecil: ambas, com efeito, são formas de hemiplegia [paralisia] moral" 

A partir da desilusão com a política, sua produção escrita diminui, mas é deste período que datam cursos que ministrou em Espanha e na Argentina, de abordagem fenomenológica dos mais variados assuntos: “Que és Filosofia?”, “Ensimesmamiento y Alteracion (sobre a sociologia)”, “Unas Lecciones de Metafísica”, “Que és conocimiento?”, etc.

Publicados postumamente, seja em forma de manuscritos preparatórios para aulas, seja como fruto do fiel trabalho de discípulos que pacientemente transcreveram as palavras do mestre e revisaram notas tomadas em aula, dão testemunha de que a primeira máxima que seu engenho nos dera - a do salvamento das circunstâncias - ainda pulsava em seu espírito mesmo no exílio, agora somada a outra igualmente famosa: a de que as ideias que interessam são aquelas dos náufragos, isto é: só aquilo de que nos lembramos na desgraça material, que afeta nossa existência particular e insubstituível – que ressoa em nosso “fundo insubornável” - é que de fato importa; o resto é verborreia, por mais chique e conveniente que seja.

Mas tais cursos mostram também outro aspecto do filósofo espanhol: a extrema polivalência de sua febril e incessante atividade, bem como a miríade de assuntos que sua inteligência dominava e manifestava. Com efeito, Ortega foi um dos últimos intelectuais de importância a, fora do contexto burocrático da universidade, desenvolver livremente sua capacidade de aprender, ensinar, descobrir e sintetizar em todos os ramos do conhecimento, ou ao menos em todos aqueles que lhe despertavam interesse existencial (que eram ideias de náufrago...), assenhorando-se da posição plenamente humana – e portanto múltipla na unidade da inteligência – que a especialização moderna nega, em acachapante e cruel depressão do intelecto.

Fez isso não só por vocação humana geral e talento particular; procedeu assim acreditando que o abandono do humanismo pela técnica especializante burocrática tinha sido a causa das mazelas a que o século XX assistiu e sofreu:

"Foi preciso esperar até o começo do século XX para se presenciar um espectáculo incrível: o da peculiarísssima brutalidade e agressiva estupidez com que se comporta um homem quando sabe muito de uma coisa e ignora todas as demais." 

Tampouco fez caso de cargas horárias ou programas bem-comportadinhos e pre-estabelecidos: levava seus cursos até onde era conveniente e necessário para o aprendizado, e mesmo para fora das paredes universitárias, continuando sua atividade docente e filosófica nos restaurantes, casas dos alunos ou cafés (o café Tortoni, em Buenos Aires, até hoje tem uma placa em sua homenagem). Assim testemunha um de seus alunos, relatando-nos que Ortega entretinha “frequentes reuniões com seus discípulos (...), nas quais respondia às múltiplas questões, dúvidas e objeções que se lhe apresentavam, sobretudo com respeito às doutrinas expostas em aula, clarificando e precisando conceitos, numa espécie de espontâneo “seminário perpétuo” que tornava patente, quiçá com mais contundência ainda que as próprias lições ex cathedra, a sólida construção sistemática de seu pensamento, o rico e vasto subsolo de saberes que a ele subjazia, e a poderosa garra intelectual, a vivacidade desveladora de uma mente em constante alerta e como que em ignição, que parecia crescer no diálogo direto”. (Antonio R. Huéscar, Prologo ao “Que és Filosofia?” e “Unas Lecciones de Metafisica”, Ed. Porrua, Mexico, 1998).

Saber de tudo um pouco, e de poucas coisas tudo, articulando o conhecimento na unidade moral e substancial do ser, radicado nas suas particulares circunstâncias: essa foi a missione de Ortega, cumprida com méritos e juros abundantes.

Há algumas razões importantes para ler Ortega y Gasset. Primeiramente, seu toque de Midas quanto às questões que resolveu abordar, e que, uma vez referidas pelo filósofo, se emprenhavam de contribuições indestrutíveis e impassíveis de serem ignoradas (muito embora, de fato, o sejam).

 Em segundo lugar, porque, ademais de sua erudição, didática e generosidade intelectual, Ortega foi o maior prosador e expositor de língua espanhola que jamais existiu. Aliás, por esta razão, eu recomendo a todos que o leiam no original espanhol, mesmo que não saibam a língua, pois não há melhor professor. E a claridade e elegância de seu estilo influencia mesmo nossa expressão em português. Efetivamente, não é todo dia que vemos um filósofo/sociólogo/cientista/jurista criar com tanta desenvoltura um quadro poético como aquele do início de seu artigo “Conversación en el Golf o la Idea de Dharma”.

Em terceiro, porque Ortega é um daqueles grandes pensadores que, ao lado de Otto Maria Carpeaux, Frederick Copplestone, Eric Weil, Sorokim, etc., servem de portal para o estudante que deseje saber tudo o que lhe é importante saber na alta cultura, sem cuidar das divisões burocráticas e artificiais de matérias que são impostas pela Universidade.

 Facilitando essa bem-aventurada empreitada, as obras mais importantes de Ortega, em espanhol, estão disponíveis gratuitamente em: http://idd00qaa.eresmas.net/ortega/biblio/biblio.htm.

 Que a profunda, corajosa e independente inteligência de Ortega y Gasset, aliada ao seu bom humor e generosidade, anime esta empreitada que declaramos aberta desde já.

 Rio de Janeiro, 22 de abril de 2012.

Felipe Oquendo