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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Arte de Massas

Walter Benjamin
 Amigos,

Inicio minha contribuição ao blog com algumas considerações sobre o tema “Arte de Massas”. Para quem anda cansado das leituras jurídicas, da CPI do Cachoeira, da crise na Grécia e, em especial, para os flamenguistas cansados de férias, espero que esse texto possa servir ao propósito de relaxar a mente e estimular outras leituras sobre História e Filosofia da Arte.

A história da arte é um reflexo da história dos homens. Um espelho fidedigno de seus hábitos, de suas crenças, de suas angústias. A arte tem vocação libertária, serve de canal a uma ampla gama de sentimentos e convicções. Talvez por isso tenha mudado tanto e tão profundamente ao longo dos séculos, como o próprio homem, seu senhor e também seu servo, seu amante e, muitas vezes, seu objeto. A arte é perturbadora, mais que tudo. É nisso que repousa seu traço de humanidade.

Mas falar em "Arte" é tão generalista quanto falar em "Homem". Pouco se pode extrair de gêneros tão amplos. Ainda assim, quando pensamos numa História da Arte quase sempre temos em mente os clássicos, as obras auráticas, únicas, individualizadas pela genialidade do artista. Tais manifestações estão intimamente relacionadas a uma atmosfera de religiosidade e aristocracia, constituindo verdadeiros signos presuntivos de poder, riqueza e/ou divindade. Portanto, referem-se a um dado momento histórico e a um limitadíssimo conjunto de apreciadores.

Em contraposição, o século XX nos proporcionou a emergência de uma outra perspectiva artística, bastante mais plural: a arte de massas. Mas quais foram os fatores decisivos para essa quebra de paradigma? Restringindo um pouco mais a análise - a fim de que o artigo cumpra com sua finalidade e seus limites - qual a contribuição das técnicas de representação, como a fotografia e o cinema, para o desenvolvimento de uma arte de massas?

Para tentar discorrer sobre o tema, valho-me das ideias de Walter Benjamin[1]. Este filósofo, crítico literário, tradutor - em suma, intelectual - judeu alemão, nascido ao final do século XIX, asseverava que a obra de arte sempre fora reprodutiva[2], mas era categoricamente honesto na sua percepção de que a reprodução técnica da obra permitiu que se alcançasse um novo estágio na história da arte, muito além das primeiras técnicas de imitação, que não tiveram o escopo de “massificar” ou "exponibilizar" a produção artística. A fotografia, por exemplo, trouxe uma inovação marcante: demitiu as mãos de seu emprego mais utilitário e artesanal, deixando o trabalho principal a cargo dos olhos.

Não obstante, as “novas” [à época do autor] técnicas de representação esbarraram na questão da autenticidade, desconstruindo a ideia de aura, ou melhor, acelerando o declínio desta característica comum às demais representações artísticas que lhes antecederam, como a pintura e o teatro, por exemplo.
Diz-se, à guisa de explicação, que os objetos auráticos são aqueles “soprados” não por indivíduos, mas por coletividades. Deixando de dourar a pílula e sendo mais claro: a relação com o produto é totalmente oposta àquela que se verifica em face dos objetos reproduzíveis ou reproduzidos, como, por exemplo, os filmes, que pressupõem uma seriação. Nessa toada, especificamente, a relação aurática acaba sendo transferida para os atores e diretores (fala-se na “estrela de cinema”). Já os objetos corpóreos únicos permanecem sujeitos à decadência. Com efeito, assim se consegue compreender que o “social” e o “único” se distinguem, já que este último reproduz aspectos de um certo fetichismo, naquilo que há de ritualístico na relação entre o homem e o objeto que ele cria.

Além disso, a reprodução técnica amplia, sobremaneira, a possibilidade do olhar humano. No caso da fotografia, por exemplo, é possível fixar imagens que, numa situação original, passariam facilmente despercebidas ao olhar mais atento. Para além dessa característica, a reprodutibilidade trouxe o objeto para perto das massas, para sua contemplação banalizada e desvinculada da tradição ritualística, e consequentemente desvinculada de seu valor de culto. A obra de arte se emancipa do culto. Se nas suas origens ficava adstrita ao campo religioso e aos olhos de poucos, agora adentra no campo secular e da exposição às massas. Com razão, pode-se dizer que aquilo que se produz já é feito com a intenção de ser reproduzido, verificando-se sempre um escopo social desde a fase pré-produtiva.

O autor sugere essa tendência no campo cinematográfico e aponta, quase que de forma causal, o aprofundamento da crise nas obras teatrais: “A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original”. Destarte, a relação de representação do homem através do aparelho também impõe outra inovação nas produções, sobretudo em razão das exigências técnicas que se colocam diante do ator de cinema. Este sujeito deixa de ter contato com seu público e passa a ter sua atuação balizada por um grupo de técnicos cinematográficos. Nesse sentido, distancia-se do resultado instantâneo da produção junto aos espectadores, mas continua trabalhando sob a expectativa da repercussão futura. Em outras palavras, projetam-se os efeitos da atuação para o momento da exibição do filme. Nesse interregno, o ator parece atravessar um estado de quase-liminalidade, já que o reconhecimento de seu trabalho pelo público permanece suspenso até a consagração (ou não) nas telas de cinema.

Também são impressionantes os imperativos da reprodução na arena política. Como olvidar a relação intrínseca entre o avanço das técnicas de reprodução e a formação do político profissional? Este indivíduo se sujeita a uma seleção baseada na razão direta entre sua capacidade retórica e o alcance de sua mensagem através dos veículos de comunicação. Portanto, deve ser profícuo discursista. Não o sendo, nunca poderá prescindir de uma boa equipe de propagandistas. Isso tanto é verdade que hoje em dia muitos publicitários acumulam fortuna forjando a imagem de políticos: agigantando suas virtudes, ocultando seus defeitos, prestando-lhe assessoria nos discursos e até repaginando suas aparências físicas. Assim criam grandes animais políticos, muito maiores do que são os homens que lhes dão nomes.

Desta feita, percebe-se que são inúmeros os fatores trazidos por essas técnicas de representação para a conformação de uma arte de massas. Vimos alguns poucos, porém decisivos. Em síntese, talvez se possa dizer que esses fatores permitiram que a arte alcançasse esse viés social, deixando de lado sua origem teológica, passando pela contemplação de devotos restritos, até chegar ao cotidiano burguês, por onde ela caminha depressa, irrequieta e pujante, muito mais no sentido da diversão do que da devoção. Não obstante, seja para fugir do mundo, seja para se unir a ele, a arte continua sendo o meio mais seguro[3].

Mas, se os canais foram ampliados, a tradição passou a experimentar uma crise profunda, o que nos permite até anunciar o encerramento de um período com traços bem definidos, ou como sugeria Danto, um suposto “fim da arte” [4]. Não pretendemos ir tão longe e fazer coro ao anúncio fatalista, que na verdade tem uma explicação menos impactante, mas uma coisa é certa: a releitura de W. Benjamin já pode e deve ser feita de forma a contemplar a considerável ampliação dos canais midiáticos, sobretudo com o avanço arrebatador da internet. Mais do que nunca, a renovação das estruturas sociais marcha a passos largos. Não sabemos para onde. Mas isso já é conversa para outro artigo.

Felipe Pereira  

[1] Sobre essas ideias, grosseira e brevemente expostas neste artigo, vale consultar um de seus mais prestigiados ensaios no campo da Teoria Materialista da Arte: “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936)

[2] Em sentido oposto, a brilhante frase de Paul Klee: “A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver.”

[3] Pequena homenagem a Johann Goethe

[4] O anúncio de Arthur C. Danto em sua obra “Após o fim da arte – A arte contemporânea e os limites da História ” não é tão inovador. Parece seguir a linha geral lançada por Hegel em sua "Teoria do Fim da História”, recentemente (nem tanto) revigorada por Francis Fukuyama em “The end of history and the last man”. A ideia é fazer menção ao fim de um longo e emblemático período de antagonismos que movimentou o processo histórico e o início de um período de estabilidade. Ao fim e ao cabo, não consigo concordar com as explicações dessas teorias. Todas elas me parecem fruto de conjecturas pessoais, reducionistas e historicamente contaminadas.

5 comentários:

  1. Surpreendente! É a única palavra que resume de forma muito precária a leitura dessa grande contribuição.
    Já faz mais de sete anos a perda por completo que tinha com os textos desse gênio chamado Walter Benjamin que tanto contribuiu na arte, comunicação e sobretudo para a sociedade.
    Foi muito feliz a escolha do fantástico personagem, traduz o real espírito da confraia que cada fez mais se enriquece por esses momentos únicos.
    Abraços.

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  2. Sensacional! Análise acurada e contundente do cenário atual da arte!!
    Apenas para dar continuidade ao debate: Concordo que ainda não chegamos no fim da arte e nem mesmo ao fim da história. Mas "não há nenhuma nova ideologia disponível" (como sempre diz o Barroso). Se somos a geração pós-tudo, para onde está caminhando a história, a arte, a humanidade? Receio que, ao menos, estamos vivendo um "gap" profundo de novas ideias capazes de revolucionar os velhos paradigmas vigentes.
    bjsss
    Marcelle

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  3. Além disso, o Autor era marxista e acreditava na transformação social pela cultura.
    Brilhante texto.

    Abs,
    ALberto.

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  4. Excelente texto, Soneca. Muito bem escrito e informativo. Para dar fomento ao debate, numa visão não marxista, sugiro a leitura de "Arte ou Desastre" de Ângelo Monteiro (mais estético) e "Sagração da Primavera", de Modris Eksteins (mais político).

    Abs,

    Oquendo

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  5. (Mais um) excelente texto, ampliando o espectro de abrangência do COYG!
    Que o mundo passa hoje por mudanças, todo mundo sabe... mas sempre foi e sempre será assim... e só mais tarde vamos olhar e classificar o período atual...

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